Um
artigo de Fátima Bonifácio, Jornal Público, 05.09.13
"A
morte de António Borges
Não
me espanta mesmo nada a displicência enfadada com que foi
pela Esquerda acolhida a notícia da morte de António Borges, por
contraste com a comoção homérica que provocou o desaparecimento de Miguel
Portas. A Esquerda sempre teve dois pesos e duas medidas. Um dos
postulados capitais, basilares do comunismo sempre foi, e continua a
ser, o de que a moral deles é diferente e superior à dos outros. Defendem
os pobrezinhos, pugnam pela igualdade dos homens, prometem construir
sociedades em que cada um receba o que precisa independentemente
do que merece, almejam a felicidade e o bem-estar universais. O Bem
está do lado deles. Por isso mesmo — e atente-se na perversão contida
neste (aparente) paradoxo — podem perpetrar o Mal à vontade, sem limites
nem escrúpulos de qualquer ordem. Trotski, como aliás Lenine e sobretudo
Estaline, foram explícitos a este respeito: os comunistas podem
sequestrar crianças, matar pais e filhos e avós, dizimar populações
inteiras à custa de fomes deliberadamente provocadas, prender, torturar, executar
e deportar milhões de pessoas, perseguir ciganos, judeus e homossexuais,
sem que por isso percam uns minutos a vasculhar qualquer
culpa albergada nalguma prega recôndita da sua massa encefálica, ou sem
que ao menos lhes ocorra proceder a um exame, ainda que perfunctório,
das suas consciências. Sempre estiveram e continuam perfeitamente
tranquilas, apesar dos crimes inqualificáveis que cometeram.
Sempre
me repugnou a condescendência generalizada — sim, generalizada à esquerda
e à direita — de que os comunistas beneficiam e sempre beneficiaram. A
razão disso não é difícil de descortinar. Praticaram atrocidades, mas foi
pelas razões mais justas, belas e humanitárias do mundo, ao passo
que Hitler assassinou milhões de judeus inocentes por um motivo que lhes
não podia ser imputado, o facto de terem nascido judeus. É verdade
que assim foi, desgraçadamente. Mas quem ler alguma coisinha de história
do regime soviético aperceber-se-á rapidamente de que os
kulaks, de classe social que eram, foram transformados pelo
estalinismo numa raça ou etnia: os filhos de alegados kulaks, tão
inocentes como os judeus massacrados pelos nazis, eram perseguidos,
presos e mortos precisamente por isso — por serem filhos de kulaks: a
peste transmitia-se de pais para filhos e netos; aliás, “kulak” tornou-se
um insulto como foi o de “fascista” a seguir ao 25 de Abril:
um epíteto depreciativo ou até odioso, completamente desligado
da sua significação político-sociológica original. E, na Pátria dos
Trabalhadores, ser kulak, real ou inventado, serviu de desculpa política
para toda a casta de perseguições e assassinatos. Depois, a Rússia
teve um papel decisivo na derrota da Alemanha na II Guerra Mundial, e
isso, aos olhos de um Ocidente capitalista eternamente
culpabilizado — por motivos longos de explicar — tornou ainda mais
luminosa a auréola que emoldurava o Comunismo.
Mas
não foi preciso esperar pelo desfecho da II Guerra Mundial para que um
regime bárbaro e sanguinário acabasse bafejado pelas boas graças
do Ocidente e em especial pelos respectivos intelectuais, salvo
honrosas excepções como Aron ou Camus. Em meados dos anos trinta do séc.
XX, Boris Souvarine tentou esforçadamente publicar em França
uma biografia de Estaline, tendo submetido a obra (que ainda
hoje se recomenda (1)) à Gallimard. Dada a ausência de resposta, Georges
Bataille intercedeu junto de André Malraux, membro do
comité de leitura da editora. Eis a resposta dada por este
ilustre e celebrado intelectual de esquerda, um medalhado da
Democracia: “Je pense que vous avez raison, vous, Souvarine et vos
amis, mais je serai avec vous quand vous serez les plus forts.” (2) O
curioso está em que mesmo hoje, quando já são eles os mais
fracos, continuam, em países como Portugal, a beneficiar de um
respeito e consideração que o seu passado, nunca renegado, em absoluto não
autoriza.
Nunca
os comunistas portugueses admitiram qualquer erro ou crime e ainda menos
qualquer culpa. Nunca se demarcaram do estalinismo — nunca fizeram a
mais leve autocrítica — e, para meu espanto e de muitas pessoas, acham-se
os verdadeiros democratas e lutadores pela liberdade. Esta arrogância
moral brada aos céus. Mas o Jerónimo e a sua capelinha lá estão
sentados no Parlamento, falando em nome da Democracia e — pasme-se —
de Portugal e dos Portugueses, enquanto o já não tão jovem Bernardino
defende nos Passos Perdidos, em frente às câmaras de televisão, que a
Coreia do Norte é um regime democrático. Que dizer de Cuba, esse
paradisíaco santuário dos pobres e desvalidos do mundo, onde
a Liberdade nos entra pelas narinas! Quando em 1991 os comunistas
russos ensaiaram um golpe de Estado para liquidar Gorbatchov e asfixiar
novamente a União Soviética, os comunistas portugueses rezaram para
que o golpe triunfasse, e não conseguiram disfarçar o seu desgosto e
frustração pelo desfecho vitorioso da liberdade.
Isto
— esta recusa em olhar de frente o passado e reconhecer o crime — cava em
Portugal um fosso intransponível entre a Democracia e o Comunismo:
está aqui a raiz da impossibilidade de diálogo, a origem de um insanável
desaguisado que nos transforma em inimigos e nos impede de discutir
ideias racionais como adversários polidos e civilizados. Mas então, e a
Esquerda não comunista? A Esquerda socialista ou não alinhada? (Não me detenho
no Bloco para não gastar espaço com minudências.) A Esquerda socialista e
não alinhada não renega as suas remotas origens, como um filho não renega
um pai alcoólico ou ladrão; e, mais decisivo, partilha com os comunistas,
embora mais discretamente, a aversão pela Liberdade tal como
os liberais a entendem, e abominam o regime capitalista em que ela
nasceu, germinou e se expandiu (3). Para António Borges
está naturalmente guardada uma olímpica indiferença ou um aberto
desprezo."
Sem comentários:
Enviar um comentário